Jorge Luiz Borges |
Poucas semanas depois, os móveis começaram a afantasmar-se até se tornarem invisíveis, salvo a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. Além disso, as paredes do aposento mancharam-se de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Contudo, ele continuava escrevendo, mas, como persistia na negação da caridade, transladaram-no para uma oficina subterrânea onde havia outros teólogos como ele. Aí esteve alguns dias encarcerado e começou a duvidar de sua tese; permitiram-lhe voltar. Sua roupa era de couro sem curtir, mas tentou imaginar que os fatos anteriores haviam sido mera alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Num entardecer sentiu frio. Então percorreu a casa e percebeu que os demais aposentos já não correspondiam aos de sua moradia na terra. Um estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível entrar nele; outro não tinha mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas. O cômodo dos fundos estava cheio de pessoas que o adoravam e que lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sapiente quanto ele. Essa adoração agradou-lhe, mas como algumas dessas pessoas não tinham rosto e outras pareciam estar mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Então determinou-se escrever um elogio da caridade, mas as páginas escritas hoje apareciam amanhã apagadas. Isso lhe aconteceu porque as compunha sem convicção.
Recebia muitas visitas de gente recém-morta, porém tinha vergonha de se mostrar num alojamento tão sórdido. Para faze-las crer que estava no céu, combinou com um bruxo do cômodo dos fundos, e este as enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Apenas as visitas se retiravam, reapareciam a pobreza e a cal, e às vezes um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mago e um dos homens sem rosto levaram-no até as dunas e que agora é como se fosse criado dos demônios.